terça-feira, 12 de agosto de 2025

San Martín monumento nacional

 

É cacoete de professor de História: sou instigado por monumentos de praças e avenidas. Figuras equestres, então, me fisgam completamente. A de Bento Gonçalves, na Avenida João Pessoa, em Porto Alegre; a de Marco Aurélio, na praça do Campidoglio, em Roma; a de José de San Martín, na praça de mesmo nome, em Buenos Aires. Sinto como se houvesse algo a decifrar. Entro no clima.

Esses monumentos de figuras histórias (geralmente homens, imperadores ou generais, que se destacaram na guerra e na política) não foram construídas à toa. São personagens que se transformaram em mitos e servem a propósitos grandiosos. Além do papel histórico que de fato exerceram (governando, comandando tropas), ganharam uma função simbólica a ser exercida para muito além de suas humanas e precárias vidas. Bento Gonçalves passou a encarnar os ideais autonomistas do povo sul-rio-grandense; Marco Aurélio, a grandeza do Império Romano conduzido com determinação e sabedoria; San Martín, a unidade do movimento de independência que resultou na criação do Estado Nacional argentino.

O modo como essas figuras humanas se transformaram em mitos e passaram a dominar o imaginário de uma coletividade, uma nação ou império, é assunto que arrasta historiadores e poetas e dá assunto para uma vida inteira.

Quando estive em Buenos Aires, dias atrás, logo no primeiro dia, caminhei com a minha companheira pela Calle Florida e fomos até a Plaza San Martín. Era um dia frio, ensolarado e de céu azul, e não deu outra: fiquei fascinado pela figura do herói platino, em bronze, montado no seu cavalo, a espada erguida, no alto e no centro da praça.  Escultura criada por volta de 1878 (ano do centenário de nascimento do herói), quando já estava consolidado Estado argentino (assim como iniciava a mitificação de San Martín), e a figura ainda irradia sua áurea de Libertador pelo local.

Monumento a San Martín, na praça de mesmo nome, em Buenos Aires.

Este sentimento e curiosidade me acompanharam a viagem inteira e fiquei puxando a memória a respeito da sua figura histórica... atento às diversas referências feitas a ele nos mais variados logradouros públicos. Não há como escapar de San Martín, assim como, no Rio Grande do Sul, não deixamos de ouvir e ler os nomes de Bento Gonçalves, Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros.

José de San Martín foi filho de espanhóis (o pai era da elite administrativa da colônia), nasceu em Yapejú (1778), no atual norte da Argentina, e cedo sua família regressou a Espanha. Teve formação militar na Metrópole e se destacou nas guerras contra Napoleão na Península Ibérica. Envolveu-se com a Maçonaria e regressou a terra natal (1812) para lutar contra o domínio colonial, obtendo grande êxito nas campanhas militares que liderou, em especial no Chile e no Peru.

Curiosamente, depois de um encontro com Simón Bolívar, em Guayaquil (no atual Equador, em 1822), se retirou da cena política, se auto-exilou na França e lá viveu seus últimos anos. Morreu em 1850. Não há registros sobre a conversa com Bolívar, mas se supõe que os dois líderes (Bolívar, republicano; San Martín, monarquista) não se entenderam e o argentino abriu mão de tudo, deixando o campo livre para o seu aliado.

Minha viagem seguiu de Buenos Aires para Mendoza, fiz um passeio turístico pela Cordilheira dos Andes e, súbito, ouvi a guia anunciar que estávamos nas “rutas sanmartinianas”. Isto é, no famoso itinerário das tropas de San Martín na Campanha do Chile, etapa importante da guerra da independência: a de solapar o domínio espanhol na América. Vencer os realistas na Capitania do Chile (o que se concretizou nas batalhas de Chacabuco e Maipú) e depois avançar sobre o principal bastião da resistência espanhola, o Vice-reinado do Peru (o que também se efetivou em novas vitórias militares).

Caminhando no gélido vale da Cordilheira, me deparei com uma pequena ponte do século XVIII (Ponte de Picheuta, devidamente restaurada por arqueólogos de uma universidade local), utilizada pelas tropas de San Martín na Campanha do Chile. Por volta de 5.400 homens compunham o efetivo militar sob o comando do Libertador, a grande maioria arregimentada a força, precariamente vestidos e armados (muito distantes das representações gloriosas de soldados uniformizados presentes nos relevos magníficos dos monumentos públicos), e essa multidão atravessou aquela ponte. Soldados que pouco ou nada sabiam do que se passava na cabeça dos seus chefes militares. A plebe rude que dá a vida para a glória dos grandes generais.

Ponte de Picheuta, na Cordilheira dos Andes.

Resumindo: vivenciei naquele pequeno vale, nas margens do rio Picheuta, diante de outro monumento da guerra da independência, uma experiência muito distinta daquela que vivi na artística praça de Buenos Aires. Experiências que se complementam, uma delas encenada em bronze requintadamente moldada, a outra feita com pedra selada com argamassa. Numa delas o mito elaborado com sofisticação; em outra, o mito em estado mais cru, mais próximo ao horror que foi a guerra anticolonial, que se prolongou por longos quinze anos (1810 a 1825) e até hoje preenche páginas e páginas de livros, absorve historiadores e encanta turistas.

sábado, 9 de agosto de 2025

Vinho com gelo

 

Na primeira vez em que estive em Buenos Aires, em janeiro de 1977, o câmbio era tremendamente favorável à moeda brasileira e me chamaram atenção os baldinhos de gelo colocados nas mesas dos restaurantes junto com o vinho. Eu era estudante universitário, tinha pouca grana e quase nada sabia sobre consumo e fruição de vinhos. Foi a minha primeira viagem internacional.

Eu trabalhava há pouco tempo como balconista numa filial da Livraria do Globo (na Rua 24 de Outubro, em Porto Alegre) e uma amiga me convenceu de que “era agora ou nunca”. “Nunca mais teremos uma oportunidade dessas”, ela me disse, se referindo ao valor da nossa moeda frente ao peso argentino. Meu ganho mensal não passava de um salário-mínimo e ela garantiu que era o suficiente para uma semana.

Encaramos a viagem de ônibus, passamos por Chuí, Montevidéu e pegamos o aliscafo em Colônia.[1] Nossa hospedagem foi num modesto hotel próximo ao porto (decadente, naquela época; hoje, o reformado Puerto Madero) e achei ótimo. Pensáramos que “pintaria um clima entre nós”, mas não rolou e permanecemos amigos. Ela arranjou um namorado portenho (minha amiga não perdia tempo) e algumas vezes saíamos os três a peregrinar por praças e pizzarias. O rapaz tinha ligações com a esquerda estudantil, nos colocava a par do golpe militar ocorrido no ano anterior e, principalmente, das prisões arbitrárias que vinham acontecendo.

Eu estava concluindo o Curso de História, achava que entendia alguma coisa sobre as ditaduras militares na América Latina e hoje vejo que minha compreensão era rasa, muito rasa. Não fazia ideia da truculência dos órgãos de segurança, das torturas e dos desaparecimentos.

Na terça-feira retrasada, quando estava em Buenos Aires almoçando nas Galerias Pacífico (justamente abaixo dos famosos afrescos, no hall central), observei um senhor encher seu copo de vinho com cubos de gelos e recordei... essa primeira viagem ao mundo portenho e esse estranho costume: o gelo no copo de vinho. Não vi isso em nenhum outro lugar, nem em Buenos Aires nem em La Plata e Mendoza, e não avalio a abrangência dessa prática.

Em Mendoza, estive em três vinícolas sofisticadas (Vigil, Zuccardi e Catena Zapata) e, em nenhuma delas, houve referência a esse costume. Talvez uma esquisitice de alguns portenhos, imagino agora.

Vinícola Catena Zapata - agosto de 2025.

Tentei contar isso para minha companheira, mas não deu tempo. Tanta coisa para falar, comentar, que esse assunto se perdeu no caminho. Bebemos brancos e tintos (mais tintos do que brancos) e em nenhum momento algum garçom nos perguntou se queríamos gelo. Acho que perceberam que não éramos “bárbaros”.



[1] Não encontrei a palavra “aliscafo” nos dicionários Aurélio e Houaiss, mas era assim que se falava, quando não se queria dizer “ferry-boat”.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Apenas um turista na Argentina

 

Estive na Argentina durante nove dias e bati pernas por Buenos Aires, La Plata e Mendoza. Postei fotos no Facebook durante a viagem e um ex-aluno me perguntou se percebi as mudanças que o presidente Milei está causando no país. Respondi que não, pois era apenas um turista, viajando com minha companheira, desses que chegam de avião, ficam em bons hotéis e, no caso de Buenos Aires, vão a um balé no Teatro Colón, bebem vinho na Avenida 9 de Julio, almoçam no Puerto Madero e visitam museus de arte (o MALBA e o Museu de Belas Artes).

Puerto Madero, com a Puente de la Mujer ao fundo.

Se fosse a um evento acadêmico e conversasse com professores de universidades estatais, certamente saberia dos impactos da política presidencial na educação e na ciência. Afinal, segundo o noticiário, os salários dos professores foram arrochados e alguns estão debandando. A situação também é crítica na área científica e, só no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, quatro mil postos de trabalhos foram eliminados.

Enxugar a máquina pública é a palavra de ordem presidencial – “um gênio”, segundo um motorista que nos conduziu pelas vinícolas de Mendoza – e por volta de 10% dos funcionários públicos dançaram. Além da educação, ciência e previdência (a situação dos aposentados é terrível), a saúde pública também é alvo de cortes e cruzamos com manifestantes contrários a esta situação.

Em duas ocasiões, em La Plata e em Mendoza, nos deparamos com pequenos grupos de pessoas protestando contra um projeto de lei que atinge os profissionais que atendem deficientes. Em La Plata, atravessamos uma dessas manifestações em frente a um prédio do poder legislativo, o qual admirávamos pela beleza e monumentalidade, e súbito paramos para entender o que era aquela gente com cartazes. Dois dos manifestantes em cadeiras de roda.

Em Buenos Aires, minha companheira e eu fomos a Estación Constituición, pegar o trem para La Plata, e senti um descompasso entre o prédio monumental e o estado dos trens e da população. Achei os trens precários e os usuários, muito modestos, enquanto o prédio ainda lembrava o esplendor do período agroexportador. Uma impressão que já tivera vinte anos atrás, mas me pareceu pior. Vendo os vendedores que cruzavam os vagões (com produtos em caixas de papelão amarrados com cordões e em cestos de vime), tive a impressão de estar na Bolívia, presenciando uma cena “latino-americana raiz”, isto é, subdesenvolvida. Na volta, escolhemos o ônibus, que nos garantiram ser mais confortável e rápido (o que se comprovou integralmente).

Como disse ao meu ex-aluno, eu era apenas um turista. Desses que viajam com a companheira e privilegiam os bons momentos: um espetáculo no Teatro Colón (mesmo que seja nas galerias), uma garrafa de Malbec na Avenida 9 de Julio, uma caminhada noturna pela Avenida Córdoba e os desdobramentos felizes que essas vivências agradáveis produzem.

Milei e sua serra ultra neoliberal passaram ao largo. Só não esqueci de José Hernández e Domingo Sarmiento (autores de "Martin Fierro" e "Facundo", respectivamente), dos quais encontrei referências em praças, monumentos e até na conversa com um motorista de Uber, nem de Borges e Cortázar, diversas vezes presentes em livrarias e espaços de memória.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

As gurias do Rococó

 

No início da década de 1970, quando era estudante do Julinho (Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre), a professora de História da Arte dividiu a turma em grupos e cada um apresentou um período da arte ocidental: o Gótico, o Renascimento, o Rococó, e por aí vai. Não tenho certeza a respeito de qual escola artística meu grupo precisou dar conta (talvez o Barroco), mas as gurias que se sentavam a minha frente apresentaram o Rococó e disto jamais esqueci.

Eram quatro moças entre 16 e 18 anos (estávamos no segundo ou terceiro ano do Colegial) e duas delas eu achava excepcionalmente bonitas. Quando elas ficaram na frente da turma, na hora da apresentação, uma delas (de pele muito branca) abriu um enorme livro com reproduções de pinturas, mostrou o quadro “Madame de Pompadour”, pintado por François Boucher, e fiquei deslumbrado. Na minha fantasia de adolescente, minha colega se tornou a encarnação desse ideal de beleza aristocrática que frequenta nossos contos de fadas, romances e filmes.

"Madame de Pompadour" (1759), de François de Boucher.

Na verdade, as quatro integrantes do grupo passaram a ter atributos daquele estilo artístico que floresceu na corte de Luís XV, na França. E não apenas aos meus olhos, pois no conceito da turma elas se tornaram “as gurias do Rococó”. Eram suaves, graciosas e sensuais (como os trabalhos artísticos apresentados), cada uma ao seu jeito de simples meninas do colegial.

Estou exagerando? Certamente. No entanto foi desse modo que elas ficaram no meu imaginário. Não me apaixonei por nenhuma delas, mas como poeta aprendiz que era, aprendendo a versejar tanto quanto a admirar a Beleza (com inicial maiúscula), coloquei-as no meu panteão de beldades. Eu lia e relia Hermann Hesse e gostava muito de um conto de sua autoria, intitulado “O Poeta”, no qual o personagem preferia olhar a beleza de longe, como espectador solitário, a se envolver com ela.[1]

Dessa maneira, François Boucher, Jean-Honoré Fragonard e Antoine Watteau entraram no meu radar de interesse. Eu frequentava uma das bibliotecas da escola, numa sala no subsolo do bloco principal, com belíssimas coleções de arte, e as folheava com interesse. Alguns títulos eram em francês e eu lia com enorme dificuldade.

Hoje, é engraçado pensar que o adolescente que eu era (ainda envolvido com a Igreja Católica e, ao mesmo tempo, atraído pelo rock e a Contracultura) fosse capaz de ter interesse pela arte mais frívola do Ocidente, aquela que vicejou na França do Absolutismo, no reinado de Luís XV, e teve Boucher e Watteau como expoentes máximos. Curioso.

Quando visitei o Museu do Louvre, em 2019, passei apressado por um dos mais sensuais quadros de Boucher, “Diana no banho”, e só dei uma espiada. O museu já ia fechar, minha antiga companheira e eu estávamos no Louvre desde a abertura, faltava ver a “Monalisa” e corremos até a sua sala. Mas a divina Diana, pintada por Boucher, não me deixou passar ileso. “Estou aqui”, ela sussurrou (erguendo seu delicado pezinho nu) e eu a olhei de canto de olho.

"Diana no banho" (1742), de François Boucher.

Quando penso nisso (que pecado não ter parado e referenciado a divina deusa), lembro também das “gurias do Rococó” e das horas que passei na biblioteca do Julinho folheando livros de arte, procurando naquelas imagens um guia para desvendar o mundo. Imagens que até hoje me povoam e enfeitiçam.



[1] No conto citado, um poeta chinês observa uma festa do outro lado do rio, deseja estar lá, gozar a alegria, mas opta por “assistir àquilo tudo como um espectador sensível” e, mais tarde, apresentar a cena “numa poesia perfeita”. Dia do bulício da vida, ele opta por “refletir o mundo [...] na poesia.” (HESSE, Hermann. Contos. RJ: Civilização Brasileira, 1970.)

terça-feira, 22 de julho de 2025

Minha avó Aymée

 

Minha avó se chamava Aymée, mas era conhecida como Meca. Ela gostava de ouvir radionovela depois do almoço, enquanto lavava a louça na cozinha. Eu tinha dez anos idade, morava no mesmo quarteirão, ia visitá-la com frequência e ficava fascinado vendo-a absorvida pelas novelas.

O rádio, colocado em cima da geladeira, enchia a cozinha de sons e eu ouvia o ruído de três batidas numa porta e uma voz feminina e chorosa dizer: “Paulo Roberto, é você?” Escutava o som da porta sendo aberta, acompanhada de uma voz masculina: “Sim, Maria Augusta, sou eu. Vim ver como você se encontra.”

As vozes eram sempre solenes, dramáticas, eu não achava graça naquilo, não entendia, mas ficaram gravadas na minha memória. A trilha sonora de meu mundo familiar.

De noite, na minha casa, passavam novelas na TV (a televisão era uma novidade, o pai recém comprara um aparelho) e a vó Meca aparecia para assistir. Recordo da abertura d“O Sheik de Agadir”, com o herói da história empinando um cavalo branco no deserto e, na sequência, cenas de intriga e outras bem melosas, de abraços e beijos. Eu novamente não entendia grande coisa, mas me fascinava o entusiasmo da vó.

Minha mãe, por sua vez, torcia o nariz por essa preferência da sua mãe.  Na certa uma implicância pelo modo exagerado como a vó Meca conduzia a própria vida: tudo sempre pintado com cores dramáticas, a vida transformada em “fita de cinema” ou novela mexicana.

Mais tarde, soube que ela se sentia vítima de “grandes injustiças” e isto marcara a sua vida. Injustiças que, provavelmente, estavam ligadas às histórias do seu pai. Ela nascera de uma “ligação” da sua mãe Antonieta com um “jornalista mulato”, a qual durara poucos anos e resultara em dois filhos, seguida por um novo casamento da mãe com um “engenheiro italiano”. O padrasto perfilhara os filhos da nova esposa, mas estabelecera uma condição: colocar uma pedra em cima da memória do pai natural das crianças.

Minha avó foi criada desse jeito e tudo indica que sempre sentiu um certo desconforto por esse “silenciamento” em torno do seu pai biológico. Mas nunca falou claramente a respeito do assunto. Desde mocinha minha mãe lidou com esses mistérios da sua mãe e só depois dela morrer conseguiu conversar a respeito. “Tua vó Meca certamente ficou traumatizada pelas histórias em torno do seu pai natural”, a minha mãe divagava, sem ter certeza de muita coisa.

Pois lembrei da minha avó lendo o romance “Chuva de papel”, de Martha Batalha (Cia. das Letras, 2023, 220 p.), em especial ao entrar em contato com o drama da personagem Glória: o seu desejo de trazer à tona a própria história. Glória é uma velha senhora que, no tempo da pandemia do Covid 19, procura fazer da sua trajetória uma autobiografia, mas encrenca ao torná-la uma narrativa possível de ser impressa. Ela quer contar o seu drama de menina que assistiu ao pai morrer de modo dramático (uma parada cardíaca num almoço de Páscoa), de mocinha que acompanhou a mãe fazendo promessa para conseguir novo marido, do médico casado que a desvirginou e a tomou como amante durante anos, controlando a sua vida, e tem dificuldade em colocar isso em palavras. Dramas miúdos de uma menina, moça e mulher muito simples que sofreu em silêncio durante vários anos e a muito custo se tornou dona do próprio destino.

Lembrei da minha avó e de suas histórias nebulosas, ambas sofrendo em silêncio suas dores de mulher em relação ao pai e aos homens em geral. Glória procurando colocá-las em palavras, transformá-las em texto escrito na velhice, enquanto minha avó as levou para o túmulo... deixando para o neto o “compromisso” de um dia esclarecer o que houve. O neto que sintonizou com o seu olhar enfeitiçado, seus ares às vezes distantes e chorosos, enquanto escutava radionovelas na cozinha, lavando a louça.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Galeria dos Lanceiros

 

Quem foi a Florença certamente andou pela Piazza della Signoria, bateu os olhos nas esculturas da Loggia dei Lanzi (Galeria dos Lanceiros) e talvez tenha se espantado com a violência das esculturas. São impactantes, belas e inesquecíveis.

Galeria dos Lanceiros. Ao fundo, "Perseu", de Cellini.

Perseu com a cabeça decapitada da Medusa, Hércules sentando o porrete no centauro Nessus (que antes tentara seduzir a sua esposa Dejanira), Pirro sequestrando Polixena, com o irmão dela morto aos seus pés, enquanto Hécuba (a mãe da jovem) se arrasta agarrada às pernas do guerreiro aqueu, mais o fabuloso conjunto escultórico do rapto de uma sabina. Um romano agarra e ergue no ar uma jovem sabina (para depois levá-la para sua cama, na sua humilde choupana, como eram as habitações dos primitivos habitantes de Roma), enquanto um musculoso sabino se prosta, vencido, aos seus pés.

"Rapto da Sabina", de Giombologna. 

Violência pra mais de metro, se poderia dizer. Heróis da mitologia greco-romano se movimentando sem freios e cumprindo trajetórias de crueldade, representados por brilhantes artistas: Benvenuto Cellini, em “Perseu” (1554), Pio Fedi, em “Rapto de Polixena” (1865), Giambologna, em “Hércules em luta com o centauro Nessus” (1599) e “Rapto da Sabina” (1583).

"Hércules em luta com o centauro Nessus", de Giombologna
e Pietro Francavilla.

Em “Hércules em luta com o centauro”, Giambologna teve a colaboração de Pietro Francavilla, uma informação geralmente esquecida nos livros de história da arte, mas não no quadro/legenda da galeria, indicando títulos, datas e autorias das esculturas.

Pois eu visitei Florença num dia frio e ensolarado de fevereiro de 2017, entrei nessa galeria, ergui os olhos justo para o “Rapto da sabina” e levei um susto. A beleza da escultura (os corpos nus em movimento, em luta, em completa tensão) me fisgou e demorei a entender o que estava vendo. Várias lembranças, como um thriller de filme, passaram pela minha cabeça. Muito além de apreciar uma obra-prima da arte ocidental eu estava contemplando a representação de uma lenda da fundação da Roma antiga... dessas que os guris da minha geração, criados na sala escura dos cinemas, tomaram conhecimento na infância.

“Rapto das sabinas” (1961) foi um desses filmes do cinema italiano (pródigo, naquela época, em enfocar temas do Mundo Antigo) que passava nas matinês do Cine Guarany, em Pelotas, e que eu assistia com a maior seriedade. Eu ia a essas sessões de cinema com meu pai e o cravava de perguntas na saída. Queria saber detalhes da trama, dos personagens, do registro histórico, e o pai se esmerava em responder. Quando chegávamos em casa, ele ia na estante consultar alguma enciclopédia, abria o volume na minha frente, lia trechos, me mostrava gravuras e minha imaginação alucinava. Um mundo inteiro se desenhava aos meus olhos, indicando o início de uma viagem que venho realizando até hoje.

No caso do rapto das sabinas, o impacto foi tremendo. Um episódio brutal, dado como verdadeiro pelo historiador Tito Lívio (e assim entendido pelo menino que eu era), mas inegavelmente uma lenda. Roma vivia os seus primórdios, era governada por Rômulo, o primeiro dos seus reis, e faltavam mulheres para aquele bando de homens selvagens que queriam formar um reino. Precisavam de mulheres que servissem de esposas, mães, e que garantissem a consolidação e crescimento do povoado. A solução foi realizar uma festa, convidar as famílias das aldeias próximas (habitadas pelos Sabinos) e, a um sinal determinado de Rômulo, capturar as mulheres e expulsar os seus pais, maridos e irmãos. Um rapto, uma violência. A formação de uma grande cidade (de um dos esteios da nossa civilização) a partir do aprisionamento de várias mulheres que, ao final (ao menos na lenda, na conversa de Tito Lívio) aceitaram a sua nova condição e passaram a conviver pacificamente com os novos maridos.

Na Galeria dos Lanceiros, em Florença, esse filme me passou pela cabeça. Me tocou o conjunto das violências representadas – cabeças decepadas, centauros massacrados, mulheres raptadas, violentadas – e fiquei fascinado. Embasbacado com o modo maravilhoso, artístico, como todo esse universo de fúrias & paixões ganhou vida naquele espaço. Por séculos e séculos, gerações de homens e mulheres se escandalizaram e se deliciaram com aquelas representações e eu era mais um nessa multidão, vivendo o espetáculo dos horrores dos primórdios da nossa civilização...

"Rapto de Polixena", de Pio Fedi.

Afinal, monstros precisaram ser vencidos, sacrifícios tiveram de ser realizados (Prolixena foi morta para que os navios aqueus tivessem bons ventos no regresso à Grécia) e mulheres sabinas urgiam ser raptadas de seus pais ou maridos para que Roma se erguesse. Ou, pelo menos, assim foi escrita e desenhada a História no nosso imaginário.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Malinowski na Avenida Osvaldo Aranha

 

Os trobriandeses, habitantes do arquipélago das Trobriand (no Oceano Pacífico, próximo à Nova Guiné), não estabeleciam nenhuma relação entre o esperma e a concepção dos bebês. Eles acreditavam que as crianças nasciam de um processo que hoje chamamos de partenogênese, isto é, sem que o óvulo feminino fosse fecundado. Segundo suas crenças, os filhos entravam pela cabeça das mulheres, encarnados num espírito chamado Waiwaia, desciam até o ventre e, a partir daí, iniciavam a gestação. Os homens eram dispensáveis nesse processo.

Isso é o que relata Bronislaw Malinowski, que estudou esse povo na década de 1910 (durante a Primeira Guerra Mundial), e que tomei conhecimento nas aulas de Antropologia, quando era estudante de História. Malinowski se propôs a entender o ponto de vista dos nativos, procurou reproduzir o seu entendimento do mundo e a professora dava aulas apaixonadas a respeito do método criado por ele: a etnografia. Um método que pretendia um mergulho no universo cultural dos povos analisados. Ou, ao menos, uma tentativa de aproximação e envolvimento com as culturas encontradas fora do eixo da Civilização Ocidental.

Malinowisk com os nativos de Tronbriand.
Fonte: Wikipédia. 

Encerrada as aulas, eu saia com um colega (Aléxis Borloz) a caminhar pela Avenida Osvaldo Aranha (o curso funcionava no Parque da Redenção, só se transferiu para o Campus de Viamão em 1977) e divagávamos a respeito do assunto. Os povos primitivos (“selvagens”, como muitas vezes se falava) nos encantavam. Nós nos sentíamos atraídos por tudo que se distanciasse da nossa civilização de matriz europeia, visto por nós como “decadente”. Além do mais, esses povos primitivos encontrados pelos europeus ao longo dos séculos XIX e XX (como os trobriandeses) se tornaram referência para conhecer os grupos caçadores-coletores do Paleolítico. Funcionavam como uma espécie de guia para outras formas de organização sociopolítica, anteriores à Grécia e Roma. Indicavam, por exemplo, sistemas matriarcais, modelos de organização de poder nos quais as mulheres não estavam excluídas. E crenças como essas, que omitiam a participação dos homens na gestação dos bebês, colaboravam para estabelecer a centralidade das mulheres na organização familiar e política.

Conversas empolgantes, ao longo da Avenida Osvaldo Aranha, na saída das aulas. Verdadeiras discussões a respeito das quais mais recordo o entusiasmo do que qualquer outra coisa. Eu andava a ler “O segundo sexo”,  de Simone de Beauvoir (sem concluir o último volume), folheava “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, de Engels, e, de forma mais sistemática, estudava as abordagens de Gordon Childe (autor obrigatório nas disciplinas de Pré-história e Antiguidade) a respeito das revoluções Neolítica, Urbana e o surgimento das Civilizações. Misturava isso com Malinoswski (sem ler “Os Argonautas do Pacífico” do início ao fim) e falava, discutia, polemizava com meu amigo.

Os homens demoraram a compreender que o sêmen que eles ejaculavam durante a relação sexual tinha papel na gestação e isso teve consequência na organização social. Eles só descobriram a sua função quando passaram a domesticar os animais (durante a Revolução Neolítica), observá-los em cativeiro e se dar conta de que, se não acontecesse o acasalamento, nada de surgir novas ovelhas, novos cabritos e bezerros. Uma observação que contribuiu para reorganizar a estrutura de poder nas sociedades de agricultores que então construíam aldeias, cidades, estabeleciam distinções sociais e desigualdades. Um processo muito complexo no qual os homens se impuseram perante as mulheres, subordinando-as, tornando-as inferiores a eles, e “se achando”. Aos poucos, substituindo o matriarcado pelo patriarcalismo...

Conversa que não tinha fim entre os jovens estudantes que éramos. Até Érico Veríssimo entrava em pauta, por meio da crítica de Floriano Cambará, personagem de “O tempo e o vento”, a respeito da sociedade machista do Rio Grande do Sul. Uma paixão que compartilhávamos, isto é, o gosto pela obra de Veríssimo.

No início dos anos 80, o meu amigo defendeu dissertação no Mestrado de Antropologia, na UFRGS, sobre a Contracultura em Porto Alegre e o surgimento dos "malucos", jovens de comportamentos desviantes (como ele procurara ser). Eu tentei ingresso no mesmo curso, não fui classificado e encarei o Mestrado em Letras, na PUC, defendendo dissertação sobre o Grupo Quixote, um grupo literário porto-alegrense. Caminhos diferentes, mas que, de alguma maneira, tiveram origem nas observações de Malinowski a respeito dos trobriandeses, nas suas crenças sobre a gestação de bebês e as diferentes formas de se inventar a vida. Caminhos que fomos criando, enquanto batíamos pernas e conversávamos pela Avenida Osvaldo Aranha.