segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Os cinco heróis cubanos

         No início dos anos 90, o governo cubano criou a Rede Vespa, isto é, uma rede de espiões infiltrada em Miami, para investigar as organizações anticastristas que promoviam atos terroristas.
Na época, a União Soviética implodira e com isso terminavam os subsídios à economia cubana. A Ilha ia de mal a pior e uma das alternativas foi incrementar a indústria do turismo. A rede hoteleira foi expandida – o turismo de classe A nas praias de Varadero, por exemplo – e favorecida ao máximo a vinda de turistas estrangeiros cheios de dólares.
Entusiasmados com o colapso do socialismo na URSS e no Leste Europeu, as organizações anticastristas passaram a esperar que o mesmo ocorresse na Ilha. E decidiram dar uma mãozinha, isto é, fragilizar ainda mais a economia cubana, assustando os turistas estrangeiros, e apressar a queda de Fidel Castro. Para isto, promoveram ações de terror na rede hoteleira e em pontos turísticos. Bombas nos hotéis de Havana e de Varadero, assim como em restaurantes de grande apelo turístico como a Bodeguita Del Medio. Também houve a intenção de sabotar a colheita da cana-de-açúcar, mas essas ações não vingaram.
O governo cubano preocupou-se com os atentados – que surtiram efeito quanto à retração momentânea do turismo – e reagiu: montou a rede de espionagem em Miami. Agentes cubanos se infiltraram nas organizações anticastristas e conseguiram impedir alguns atentados e possibilitar a captura de dois mercenários, os quais recebiam mil e quinhentos dólares por bomba.
O FBI, no entanto, cedo passou a acompanhar o serviço dos espiões cubanos e, em 1998, prendeu a maioria deles. Cinco negociaram com o governo norte-americano e ganharam proteção oficial, enquanto os outros cinco agüentaram no osso do peito. Estes foram julgados, condenados – três deles com prisão perpétua (revogada em 2009) – e viraram “heróis do povo cubano”.
Quem visita Cuba, não deixa de encontrar os retratos dos agentes cubanos e suas histórias nas paredes de hotéis e restaurantes. O governo e a população não esquece os seus espiões – “aqueles que defenderam nosso país”, me disse um comunista – e os propagandeia entre os turistas.
Um assunto palpitante, como o leitor pode perceber. Estive em Havana, no ano passado, e fiquei curioso com o caso. No final de 2011, Fernando Morais publicou um livro a respeito – Os últimos soldados da Guerra Fria (Companhia das Letras, 400 p.) – e não pude deixar de ler.
Trata-se de um relato empolgante a respeito do episódio. Uma espécie de reportagem policial e política, que joga a favor de Cuba com uma argumentação que é capaz até convencer um anticastrista. A não ser, claro, que o anticastrista em questão defenda o terror (as ações que colocam em risco a vida de civis) como ato político aceitável.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Farol de Santa Marta

Foi num verão da década de 1970. Estudantes, estávamos em férias e fomos passar uns dias em Laguna. Na verdade, numa pequena praia ao lado do farol de Santa Marta, nas imediações de Laguna. Lá montamos nossas barracas e dividimos nosso tempo entre a praia e um pequeno bar, que parecia enterrado entre as dunas. A região do farol ainda não era território de veranistas e o bar era voltado aos moradores de uma vila de pescadores.
Um desses moradores achou engraçado nosso visual de mochileiros e veio conversar conosco. Era um homem de 30 anos e fora marinheiro em navio mercante. Andara pelos portos da América Central, dos Estados Unidos e Europa. Chegara a ir ao Oriente e até conhecera o Japão. Aprendera inglês, espanhol, sabia palavras em japonês e tivera algumas mulheres – a melhor delas, uma japonesa, que conheceu num porto da Alemanha.
– Sabem o que é ter vontade de casar com uma mulher que trabalha na zona portuária? Pois é, coisa de louco. E eu quase cometi essa loucura, com a tal japonesa, vejam só!
Depois falou que estava de volta ao farol de Santa Marta, onde se criou, porque tivera um acidente. Um acidente de trabalho ou doença, não lembro direito, que o impossibilitava de viver embarcado. Não entrou em detalhes sobre o caso e seguimos bebendo calados. Uma tristeza enorme nublou seus olhos e acho que nem nos escutava.
No outro dia, ele nos avistou de longe, no bar, e nos saldou levantando o copo. Nós, guris da cidade, erguemos nossos copos e essa foi nossa última comunicação.
Será que ele sentia que estava enterrando a vida, aos 30 anos, numa vila de pescadores? Não sei. Acho que era um homem que aceitava o seu destino e pronto. Um pouco amargurado, mas aceitava.
Por um lado, nos indicava o que sonhávamos para nós mesmos – conhecer a amplidão do mundo: Panamá, Nova Iorque, Hamburgo, talvez Tóquio. Por outro, nos alertava para o que sequer imaginávamos: que alguma doença ou dificuldade poderiam nos amarrar junto ao cais e nos afundar em alguma aldeia.
Guris de 20 anos, à noite nós ficávamos olhando o facho do farol passar pelas águas do mar e era só aquilo que avistamos: a amplitude do oceano, o infinito das possibilidades de nossas vidas e a imensidão do mundo – que, até hoje, a maioria de nós não conhece.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Mudança para Porto Alegre

Minha família saiu de Pelotas e veio para Porto Alegre, em 1967. Eu tinha onze anos de idade e fui fazer a primeira série do ginásio no Colégio Rosário, tradicional escola marista. De manhã pegava o bonde para a escola e achava o máximo circular pela cidade grande. Menino nascido e crescido no interior do estado, sentia o movimento de Porto Alegre como algo grandioso. Gostava do ritmo da Capital e também da escola. Me sentia num novo mundo – “moderno”, eu diria mais tarde, ao me embrenhar na literatura de Erico Veríssimo – e, de repente, me dei conta que era motivo de chacota na escola pelo fato de ser pelotense.
Para um ou outro dos meus colegas, ter nascido em Pelotas era sinônimo de veado (“maricas”, se dizia na época) e eu sequer sabia o que era isso. Guri boboca, pouco sabia sobre sexo entre homem e mulher e muito menos entre homens. Um gordinho loiro passou a mão na minha bunda, na entrada da sala de aula, e eu achei que fosse brincadeira. Ri, contrafeito, e ele entendeu que eu gostara. A partir daí, virei o “corinho” da turma e as coisas se complicaram para o meu lado. Me queixei ao regente da turma – um professor leigo, sempre de paletó e gravata – e ele deve ter chamado atenção da turma, pois a gozação amainou. O gordinho, no entanto, nunca deixou de me olhar com um riso no canto da boca.
Esta situação marcou o meu primeiro ano de ginásio. Uma situação humilhante até hoje difícil de narrar. Quando o ano letivo encerrou, meu pai (que talvez nunca tenha sabido o que o filho viveu na escola) me transferiu de colégio. Passei para uma outra escola (também religiosa) e tive esperança de que a situação não se repetisse.
Mas me enganei. Um engraçadinho logo soube que eu era de Pelotas e a novela se repetiu. Mas eu já estava calejado e alguma coisa devo ter feito que calou os gozadores. Sei lá o que foi. Ou talvez nem tenha sido eu, mas o regente da turma quem agiu. A única coisa clara que lembro foi a humilhação que novamente vivi, assim como a raiva que tomou conta de mim em relação aos meus colegas, aprendizes na arte da macheza. Sei lá se precisavam de alguém para bater e se divertir (coisas da maldade infantil) ou se precisavam exorcizar as fantasias homossexuais que sentiam. O fato é que infernizaram a minha vida – e isto é muito difícil esquecer.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

No fundo do quintal

O vô Octaviano martelava no fundo do quintal, num pequeno galpão que havia ao lado do galinheiro. Tão pequeno que cabia apenas uma pessoa. Eu ficava do lado de fora, sentado no chão, e assistia ele trabalhar e contar suas histórias:
– Quando os portugueses chegaram ao Brasil, não havia viva alma, apenas índios. Os índios eram selvagens e até carne humana comiam.
Nem preciso comentar que os índios não eram humanos – não eram cristãos, ora pois –, que o território brasileiro era pura selva e que aquilo me fascinava.
– Cabral olhou, deu fé da qualidade da terra, e seguiu a viagem para as Índias. Mas antes deixou dois degradados para desbravarem a selva.
Meu avô materno era filho de imigrante português e tinha uma grande admiração pelo mundo luso: a grande aventura expansionista, ultramarina e colonial. O bisavô viera da Ilha da Madeira e trabalhara durante anos no transporte de charque, na segunda metade do século XIX.
Pelotas não tinha porto quando o bisavô chegara e os navios ancoravam na Lagoa dos Patos e não entravam no Canal São Gonçalo, onde estavam as charqueadas pelotenses. Então os lanchões eram carregados nas margens do canal e levavam a mercadoria aos navios. Segundo relato familiar, o bisavô fora proprietário de uma e outra dessas lanchas e, quando cansou de trabalhar nisso, aplicou o dinheiro num armazém de esquina, chamado Asa Branca.
Meu avô se criou zanzando por esse armazém e às vezes misturando o produto dos sacos de milho com os de feijão – o que lhe valeu algumas surras, ele contava.
Aos olhos do menino que eu era, o vô descendia daqueles grandes navegadores lusitanos.
– Gente muito corajosa – ele explicava –, que navegavam, descobriam mundos e fundavam cidades por todo canto, como Macau, na China; São Vicente, em São Paulo; e até Pelotas no Rio Grande do Sul...
Pra dizer a verdade, o vô não colocava Pelotas no rol das povoações portuguesas. Isto era coisa do menino que eu era. O vô martelava no fundo do quintal, consertava os brinquedos do neto, e quem sabe calafetasse uma ou outra caravela, dessas que ainda povoam a imaginação dos descendentes de portugueses...

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Caos & ruína

Aos 20 anos eu tinha uma visão catastrófica do mundo, especialmente da sociedade brasileira. Estava tudo errado, próximo ao estado de ruínas, em estágio de decadência acelerada. E somava-se a isto o fato do país viver sob um regime autoritário. O presidente Geisel falava em “abertura lenta, gradual e segura”, mas isso era algo que jovem algum – especialmente àqueles ligados ao movimento estudantil – pudesse levar a sério. Era 1975, eu cursava o segundo ano do Curso de História e meu sentimento mais íntimo era da mais completa repressão de tudo e de todos, da sociedade brasileira inteira.
Um dia expressei esse entendimento das coisas a um colega e ele me corrigiu. Lembro bem das suas palavras:
– Essa angústia é tua, Vitor.
E seguiu me explicando que as condições econômicas, sociais e políticas eram ruins para a maioria da população, mas que as pessoas viviam, não se entregavam. Lutavam cotidianamente contra as adversidades, sem vivenciar o sufocamento que eu sentia.
Dessa mesma época, guardo também a lembrança de certo dia sair correndo pela Avenida João Pessoa em direção ao consultório psiquiátrico e lá chegar espavorido:
– Eu corri, corri e senti que “eles” estavam atrás de mim, mas não sabiam – contei ao psiquiatra.
O terapeuta riu e perguntou:
– “Eles”, quem?
E terminei rindo também. A angústia era minha. Opressão e repressão sócio-políticas existiam, não eram metáforas da condição juvenil, no entanto eu as amplificava assustadoramente. De forma doentia, inclusive.
De lá pra cá, acredito que controlei esse sentimento de catástrofe e angústia, mas às vezes percebo que resvalo.
Outro dia, impregnado de informações a respeito da crise social e política na Grécia e em Portugal, tive a sensação de estar diante do último suspiro da civilização européia... Cruzei com um amigo no campus universitário, falei a respeito do assunto, e ele, displicentemente, comentou que a saída preconizada pela dupla Merkel & Sarkozy são necessárias e inevitáveis. Arrochar e implodir a periferia do euro, ele parecia dizer. Eu olhei para ele e o percebi como a encarnação da ditadura do capital e da barbárie.
Disse alguma coisa, indignado – estava escandalizado com a opinião do meu colega –, e segui adiante com a sensação de caos & ruína. Tinha novamente 20 anos e estava diante da catástrofe... E o meu amigo, subitamente, era um sereno senhor das antigas, alinhado à lógica do capital e coveiro dos melhores ideais da civilização.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Mulheres de biquini

As mulheres estavam de biquíni e desfilavam entre os convidados. As mulheres, no caso, eram a esposa do anfitrião, as duas filhas moças, uma cunhada, uma vizinha, todas devidamente acompanhadas pelos maridos ou namorados. As mais jovens com biquínis minúsculos e boa parte da bunda de fora. Tudo na maior naturalidade.
Meu amigo ficou indignado e disse baixinho:
– Tenho vontade de pôr a mão. Elas estão provocando, não estão?
– Fica frio – eu falei.
Nós dois éramos homens casados, estávamos lá com as esposas e, no meu caso, com os filhos pequenos também. Havíamos sido convidados para um churrasco de domingo, num sítio ao redor da cidade, e viéramos de bermuda, camiseta e sandália. Nossas mulheres estavam com vestidos leves, de alça, e não leváramos roupa de banho. Nem meus filhos vieram preparados para um mergulho no rio.
Meu amigo não conteve a indignação diante da semi nudez das mulheres da casa e comentamos isso durante semanas. Era início dos anos 90 e recém chegáramos a Santa Maria para lecionar na Universidade. Ele vinha de São Paulo; eu, de Porto Alegre. Ele se dizia conservador, eu fazia força para bancar o progressista.
E diante do exibicionismo feminino, como nos comportávamos? Achávamos natural que os seios se mostrassem para nós, mal  contidos pela parte de cima do biquíni, durante um churrasco familiar? Que uma coxa feminina bem torneada se revelasse em todo o seu esplendor e a encarássemos com indiferença, continuando a nossa prosa sobre o impeachment do Collor?
– Eu fico excitado – meu colega explicava, dias depois. – E me irrito porque não posso fazer nada, pois é a mulher do amigo, é a filha dela, é a puta que pariu, sei lá.
E sobre isso nós falávamos, insistentemente. Sobre as mulheres que víamos nas festas, na rua, cada vez mais insinuantes. E até sobre as alunas que entravam na nossa sala ele comentava:
– Esta está se exibindo. Olha a voz, observa o modo como fala, como se veste. A gente tem que fazer alguma coisa...
Eu falava que era assim mesmo – as mulheres estavam mais soltas, mais desinibidas e tínhamos que encarar com naturalidade ou coisa parecida. Mas meu colega não se conformava...

domingo, 1 de janeiro de 2012

O etrusco

O etrusco é um romance histórico de Mika Waltari, autor finlandês. Quem é aficcionado no gênero, conhece. Ele escreveu O egípcio, na década de 1940, seu maior sucesso, até hoje editado no Brasil.
Pois entrei num sebo anos atrás e encontrei uma edição d’O etrusco, da Editora José Olympio, 1958, com capa e páginas amareladas. Fiquei atraído pelo volume. Meu pai costumava falar desse autor e ter o livro entre as mãos foi como voltar à infância. O pai e a mãe guardavam livros que já tinham lido num armário no quarto de despensa e este autor estava entre os guardados...
Quando saímos de Pelotas, em 1967, e viemos morar em Porto Alegre, eles se desfizeram de muitas coisas – inclusive livros. Meu pai salvou alguns – dois deles eu ainda tenho: Contos, de Guy de Maupassant (Biblioteca dos Séculos, Editora Globo), e O aventureiro, de Mika Waltari. Este último, com as páginas amareladas pelo tempo.
Pegar o livro no sebo foi retomar esse diálogo antigo... Trouxe o livro para casa e só na semana passada, uns seis anos depois, encarei a leitura.
N’O etrusco, o personagem central rememora a vida depois de velho. Revela ao leitor o longo caminho que percorreu para descobrir que era um homem protegido pelos deuses, uma figura sagrada na antiga Etrúria.
A narrativa inicia no litoral da Jônia, às vésperas da revolta de Mileto contra o domínio persa. Um período fascinante para quem gosta de História Antiga: o das guerras entre gregos e persas, no século V a.C.
O narrador se envolve na revolta de Mileto, consegue escapar da derrota militar e vai fazer pirataria nas costas do Chipre e da Fenícia. Mais tarde, se refugia numa cidade grega da Sicília, vai para Roma, viaja pela Etrúria e descobre, enfim, que é um “lucumo”, um homem sagrado. De longe, acompanha as vitórias gregas em Maratona e, mais tarde, em Salamina.
E descobre que foi deixado na Jônia pelo pai, quando criança, sem saber coisa alguma da sua família. A crueldade do pai, no entanto, tinha um propósito: a de fazer o filho alcançar o conhecimento da sua condição por conta própria.
Li o romance com “olhos prosaicos”, isto é, sem me encantar com o maravilhoso mundo dos deuses antigos, seus mitos e ritos. Fui até o final do romance não apenas para saber o desfecho da trama, mas para solucionar outro enigma: aquele que as conversas com meu pai deixaram dentro de mim.
Um outro Mediterrâneo, uma outra guerra contra os persas – a me revelar que sou um homem comum, filho de um homem comum, e que isso é central na trama que me constitui: o relacionamento de um filho com o Pai e a sina de se reconstruir eternamente nesse enredo.