terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Sempre há um dia em que a gente descobre


Sempre há um momento em que a gente descobre a fragilidade da vida. Este era o tema de uma conversa que tive semanas atrás, com alguns alunos, no campus da UFSM.
Esta semana, um dos alunos retomou a conversa. Nos encontramos no centro da cidade – numa manifestação de luto pelos mortos na boate Kiss – e ele falou:
– Eu descobri na madrugada desse domingo. Descobri que a vida é frágil, bem no centro de Santa Maria, diante de uma boate sofisticada. Vinha caminhando pela Avenida Rio Branco, ouvi a sirene dos bombeiros e corri para ver o que era. A bebedeira passou na hora. Vi tudo. O incêndio, a fumaça, os corpos sendo retirados. Vi mais do que devia. De uma hora pra outra, dezenas de mortos e feridos.
A história do meu aluno é dramática, de uma intensidade violenta, e talvez sintetize a de muitos outros jovens de Santa Maria – os sobreviventes. Esta geração não vai esquecer o que aconteceu.
Tenho escutado relatos dessa juventude e todos conhecem alguém que morreu, que escapou, que está em observação no hospital, que por pouco não entrou na boate, que decidiu ir noutro lugar.
Muitos falam dos shows de pirotecnia (que sempre assistiram despreocupados), a maioria especula sobre a qualidade dos extintores, sobre as saídas de emergência, as luzes de sinalização, os alvarás de funcionamento, as responsabilidades dos engenheiros, dos bombeiros, dos empresários e da Prefeitura.
Alguns querem entender como as coisas acontecem. O que é da responsabilidade humana, o que está ao alcance das nossas ações? O que é fruto da fatalidade e não é possível controlar?
Meu jovem interlocutor está arrasado. Ele quer saber como uma faísca, uma simples faísca, provocou um número inacreditável de mortos e feridos. Quem errou no combate a esse pequeno incidente? Onde as falhas (os erros humanos) para que a faísca, o fogo e a fumaça tomassem proporções trágicas?
Sempre há um dia em que a gente descobre a precariedade da vida. E a juventude santa-mariense está descobrindo isso de forma excessivamente dramática, brutal, insuportável. 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Mundo doméstico


A mãe conta que tinha empregada doméstica, faxineira e lavadeira. Ela era professora primária, o pai trabalhava num banco, e pergunto para ela como eles pagavam tantos empregados. “Não sei”, ela diz, e explica que o salário que recebia permitia que renovasse o guarda-roupa dos três filhos, sempre que mudava a estação. Os professores da escola pública não ganhavam mal nas décadas de 1950 e 60. Mas nos 60 as coisas mudaram, ela explica. A situação salarial dos bancários também se modificou.
Na segunda metade da década de 60, as condições da classe média brasileira se reconfiguraram. Talvez seja assim que se deva dizer. Crise do modelo de acumulação de capital, crise política e institucional (resolvida por meio de golpe militar), repressão aos movimentos operário e camponês. Aos poucos as coisas foram apertando para os setores médios também.
A mãe conta que não lembra da “repressão”. Todos na família apoiavam a intervenção militar. O irmão dela era major e se alinhava ao “movimento civil-militar”. Um outro tio (do lado paterno) era do PTB, fora preso (desapareceu logo depois do golpe, apareceu meses depois num quartel e depois foi solto), mas não se falava sobre ele.
“Teu tio brizolista era da pá virada”, a mãe conta. “Ele levou teu pai a uma reunião partidária e ele voltou enfurecido. Nunca contou o que houve. Só falou que nunca mais voltava. Passou a detestar política.”
Faço com minha mãe o que se chama história oral – ou, ao menos, a coleta do seu depoimento de vida. É uma mulher que admiro – não apenas por ser minha mãe.
De manhã cedo, acordando o marido e os filhos, andava de um lado para o outro e não faltava coisa alguma para nós: a roupa para vestir, o café, o leite e o pão na mesa da copa. Andando pela casa, ela cantava o Hino Rio-Grandense ou recitava Alceu Wamosy (“Ó tu que vens cansada, ó tu que vens de longe / Entra e sobre meu teto encontrarás pousada”).
Ríamos muito, nessas horas matutinas, vestindo as calças brim-coringa e depois segurando a xícara com as duas mãos e sorvendo o café com leite. Às vezes, reclamávamos de alguma coisa. Se bem que isto de reclamar não era permitido. “Vocês têm tudo” – e aqui entrava a voz do pai –, “reclamar do quê?”
A mãe cantava, recitava e comandava. Comento que o pai dizia que ela era uma ótima administradora. Poderia comandar uma empresa. Ela ri. Bastava a casa, a sala de aula, a merenda do grupo escolar (ela foi merendeira por vários anos), responde.
Então a mãe olha para mim e diz que tinha uma senzala: cozinheira, faxineira, lavadeira. Que era desta maneira que ela fazia as coisas andarem. Mas não sabe como pagavam essas mulheres todas. Afinal, o pai era bancário e ela, uma professora primária.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Uma cidade sem pecado


Cronista bom consegue um ângulo novo a respeito das coisas e surpreende. Por exemplo: vai numa cidade e vive situações que passaram despercebidas aos outros, ou, se não foram despercebidas, não ganharam configuração em texto escrito.
Tive essa impressão ao ler o livro de Humberto Werneck, O espalhador de passarinhos & outras crônicas (Sabará, Ed. Dubolsinho, 2009), em especial nos dois textos onde ele comenta sua viagem ao Santuário de Fátima, em Portugal. O cronista andou por lá, recentemente, e não gostou. Achou a cidade sem atrativos, sem “um único motel, um solitário inferninho”. Sem nenhum lugar para pecar. Uma chatice.
Não se comoveu com os romeiros se arrastando de joelhos em direção à basílica (a maioria usando joelheiras) nem com a quantidade de velas queimando num lugar estabelecido pelos organizadores..
O cronista, inclusive, achou esquisito o comércio de ex-votos para pagar promessa ou agradecer graça alcançada – o comércio de partes do corpo humano feitas em cera. E reproduziu um dialogo cômico entre um romeiro e um comerciante:
“– Quanto vale o seio?
– Três euros.
– Mas a doença foi num só...”
Uma impressão muito diferente da que eu tive, quando visitei o Santuário. Entrei com jeito de “professor de História, interessado nas coisas do mundo do sagrado”, e sai comovido até o fundo da alma. Comprei imagens de Nossa Senhora, assisti missa, visitei os túmulos e as casas dos pastores (os pastorzinhos que disseram ter visto Nossa Senhora) e me emocionei com tudo, Os cantos litúrgicos, a música do órgão, os túmulos, os romeiros, as dimensões da basílica, a organização do espaço e das cerimônias, tudo me pegou e produziu forte emoção.
Uma cidade sem pecado, disse o cronista, não sem alguma razão. Mas, provavelmente, uma cidade com todos os pecados do mundo, ali expostos e exibidos para a exacerbação das nossas dores. O resultado de um investimento da Igreja e do Estado (do governo de Salazar) para a criação de um pólo de resistência à modernidade capitalista, liberal, e também comunista. Um lugar que ultrapassou esse projeto político-religioso (ou que concretizou esse projeto de forma eficaz), e no qual é possível vivenciar um momento especial de religiosidade. No meu caso, a religiosidade sem muita sofisticação que trazemos “do fundo da infância”.
Uma cidade que tem tudo para incomodar, como bem indica o cronista.