domingo, 29 de setembro de 2013

Sêneca e a essência da vida

         Sêneca foi um filósofo romano do século I d.C. e alguns de seus livros são até hoje publicados. Ele nasceu em família rica, na Espanha, e cedo foi para Roma estudar filosofia. Tornou-se advogado, senador, e teve a vida ligada à corte imperial, tornando-se preceptor de Nero – que governou o Império romano entre os anos de 54 a 68. Quando Nero passou a governar, Sêneca foi seu conselheiro durante alguns anos. Em 65, foi envolvido numa conspiração, acusado de tentar assassinar o imperador, e, por isso, constrangido a se suicidar. Cortou os pulsos junto com a esposa e morreu serenamente, segundo relato do historiador Tácito.
Sêneca era um filósofo estóico. Valorizava a razão – nenhum poder acima da razão humana – e propunha a renuncia dos bens materiais ou, pelo menos, uma disposição a não considerar esses bens o centro da vida. Nem os bens materiais nem os afetos, mas a vida modesta, sóbria, sem os altos e baixos das paixões. Apesar de não valorizar muito a riqueza, Sêneca foi um homem rico.
Todo esse preâmbulo, prezado leitor, é para explicar um pensamento de Sêneca que encontrei num livro sobre a civilização greco-romana e que volta e meia me faz refletir. O texto (que reproduzo com minhas palavras) diz o seguinte: reserve alguns dias para experimentar uma vida modesta. Nesses dias, use roupa grosseira, durma em cama dura e coma apenas pão. Permaneça nessa situação uns três ou quatro dias (não mais do que isso) e lembre que milhares de homens e mulheres vivem nesse estado cotidianamente, ao longo de toda vida.
Sêneca era um romano da classe dominante e devia saber das condições de pobreza da maioria dos homens livres do Império – isso sem falar na miserabilidade dos escravos. A desigualdade social do mundo romano era tremenda e superava a da sociedade latino-americana na qual vivemos.
O que Sêneca pretendia com esses exercícios de frugalidade não era, de modo algum, uma aproximação com a vida dos pobres e, a partir daí, uma prática de transformação social. Sêneca não era um revolucionário – e nem um cristão que valorizasse a pobreza e a humildade. O que ele pretendia era um exercício prático para estabelecer o primado do que considerava essencial: a vida modesta, ditada exclusivamente pela razão, sem apego aos bens matérias, nem aos afetos. A vida na sua essencialidade – restrita aos prazeres mais modestos de respirar e pensar, comer o pão e beber a água. Coisa que a maioria de nós jamais conseguiria fazer – a não ser pressionado e sem nenhuma condição de espernear.

sábado, 21 de setembro de 2013

Mitologia gaúcha

O MTG tem se revelado bastante dinâmico. Neste ano, propôs para as suas agremiações o desenvolvimento de atividades culturais que envolvessem uma reflexão a respeito da origem do gaúcho a partir da perspectiva da mitologia regional. Tempos atrás, eu via os intelectuais do MTG se contrapondo a qualquer ideia que maculasse a “verdade histórica do gaúcho”. Falar em “mito do gaúcho”, por exemplo, era uma ofensa.
Na perspectiva de um tradicionalista, não havia mito, havia verdade histórica. O gaúcho era entendido como um nômade selvagem que, ao final do século XIX, se transformou num tipo civilizado, um verdadeiro cavalheiro.
Uma das elaborações pioneiras dessa compreensão encontra-se em “Ensaio sobre costumes do Rio Grande do Sul” (1883), de João Cezimbra Jacques (reeditado pela Editora UFSM, em 2000).
Até recentemente, me parece que a discussão a respeito da figura do gaúcho se dava em torno da “verdade histórica a respeito da formação de nossa sociedade” e da inserção social dos “cavaleiros nômades” na sociedade estabelecida. Um debate que passava ao largo do entendimento de que as sociedades elaboram mitos, constroem narrativas míticas e embaralham os dados que a historiografia (com pretensões de ciência) estabelece.
Hoje, alguns quadros do MTG estão afinados com as atuais tendências historiográficas e tratam o assunto de forma diferente. Referem-se tranquilamente à “invenção das tradições”, ao projeto político-ideológico da elite regional sul-rio-grandense (que estabeleceu as bases do movimento tradicionalista) e  entendem que o gaúcho foi uma construção cultural. Como tipo social, o gaúcho foi exterminado pelas guerras e pelo cercamento dos campos. Ao mesmo tempo, foi recuperado e ressignificado por literatos e também por ideólogos da classe dominante.
De certa forma, esses novos quadros do MTG (provavelmente ainda em pequeno número) renovam a “ideologia do gauchismo” e a desvinculam de concepções conservadoras. Rompem com o entendimento do gauchismo como suporte de um projeto conservador de sociedade e o consideram, principalmente, como elemento da identidade sul-rio-grandense. Uma identidade que não cessa de conquistar adeptos.
Da minha parte, penso que tenho colaborado com esses quadros que buscam a renovação do gauchismo. Afinal, mais uma vez, fui palestrar num piquete acantonado no Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre. Preparei uma palestra a respeito das narrativas literárias e me dispus a colaborar quanto à reflexão em torno da figura do gaúcho, a partir da mitologia regional.
Nesse sentido, centrei fogo nas narrativas literárias que se alicerçam no mito, como foi o caso da obra de João Simões Lopes Neto.
Lopes Neto, afinal, ao criar Blau Nunes – um “genuíno tipo [...] rio-grandense”, “guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável” – configurou um dos mais emblemáticos gaúchos da nossa mitologia. Seus principais livros –  Contos gauchescos e Lendas do Sul – foram publicados na década de 1910 e podem ser lidos com gosto até os dias de hoje.
Ao final do conto “A Salamanca do Jarau”, entendo que Lopes Neto estabeleceu o ideal de gaúcho da nossa mitologia: o homem rude, frugal e honesto. Blau Nunes se desfez de toda a riqueza que lhe concedera o sacristão enfeitiçado pela Princesa Moura para bem poder comer o seu churrasco, beber o seu chimarrão e fazer a sua sesta em paz, com “o coração aliviado e retinindo como se dentro dele cantasse o passarinho verde”.
O leitor talvez ache que encaro de forma muito branda um assunto tão complexo a respeito da cultura sul-rio-grandense. Pode ser. Mas tem sido esse o meu jeito de dialogar com os regionalistas. Dialogar, colaborar e ao final comer um costelão delicioso ou – como ocorreu nesse ano – uma fabulosa paella gaúcha.

Comer, charlar, confraternizar, com o coração sintonizado num mito fundado encarnado por Blau Nunes – o pachorrento Aquile que nos coube no grande banquete cultural da humanidade. 

sábado, 7 de setembro de 2013

Leite adulterado

         Há cenas do cotidiano que nos conectam com o mundo, que nos remetem para além da cena prosaica do dia a dia. No meu caso, poderia dizer que o café da manhã às vezes tem esse sentido. 
Há dias em que despejar o leite na leiteira e esperar ele esquentar me remete à vivências mais profundas, como o meu tempo de criança ou a época em que eu cuidava dos filhos pequenos...  
Na minha infância, o leiteiro deixava a garrafa de leite no portão de casa e depois a mãe ou a empregada o colocava a ferver. Tinha que deixar subir no mínimo três vezes para eliminar de vez os germes e bactérias.
Minha memória pode estar enganada, mas acho que era assim: deixar ferver três vezes. Quando meus filhos passaram a tomar leite de vaca, eu tomava esses cuidados. Ferver e depois esfriar o leite. Às vezes, tudo feito com rapidez, pois o leite (a mamadeira) precisava ser servido logo.
Não havia mais o leiteiro e sua carroça passando pela rua. O leite era adquirido no supermercado e não mais em garrafa de vidro, mas embalado em saquinho plástico.
Hoje, compro caixas de Elegê desnatado e não me preocupo mais em ferver o leite. Apenas esquento. O processo de preparo do leite ganhou um estatuto industrial e germens e bactérias já vêm eliminados – junto com conservantes, claro.
No entanto, notícias de adulteração do leite passaram a ser freqüentes na imprensa e disso me lembrei, hoje, ao preparar o café da manhã...
Em Teutônia, no Vale Taquari, a empresa BRF (que produz o Elegê), recebeu 33 mil litros de leite cru adulterado com álcool etílico (o mesmo dos combustíveis e daquele utilizado na limpeza doméstica). O leite não chegou a ser industrializado, não chegou aos consumidores, mas os produtores de leite tentaram.[1]
Na manhã de hoje, diante da leiteira em cima do fogão, alguma coisa nublou a minha cena doméstica e, especialmente, a minha conexão com o passado. Pensei no que eu faria, se tomasse conhecimento de episódios como esse quando esquentasse o leite para os filhos pequenos...
Pensei tudo isso, me servindo de leite, misturando o Nescafé e bebendo silenciosamente. 
Ao fundo, cheguei a ouvir a voz do meu filho quando era pequeno, encostado na porta da cozinha, perguntar:
– E essa mamadeira, que horas vai sair?




[1] FISCAIS detectam álcool em leite entregue para a BRF. Zero Hora, POA, 31 ago 2013, p. 26.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Perigo vermelho

No espaço católico dos anos 60, era comum a pregação anticomunista. Criança, me habituei a ouvir falar mal do comunismo. Comentários a respeito do perigo vermelho, do ateísmo e da terrível situação vivida pelas mulheres, a família e a Igreja no sistema soviético. Recordo uma tia mostrando uma foto de robustas mulheres russas trabalhando com britadeiras, e ela dizendo que era uma barbaridade o que a União Soviética fazia com as mulheres, como brutalizava as mulheres ou coisa assim.
Mais tarde, no início dos anos 70, freqüentei um ambiente católico influenciado pelas idéias da Conferência de Medellín (o berço da Teologia da Libertação) e a pregação anticomunista arrefeceu. O socialismo soviético ou cubano não era propagandeado, mas compreendido como uma alternativa às injustiças criadas pelo capitalismo. E os comunistas, por outro lado, entendidos como aliados na luta a favor da justiça social.
Escrevo as linhas acima depois de ler artigo da historiadora Marta Borin, que investigou a respeito da devoção a Nossa Senhora Medianeira. Segundo a pesquisadora, uma das variáveis que dinamizaram essa devoção fui justamente o anticomunismo. A devoção teve seu centro na cidade de Santa Maria, ganhou as ruas em 1930 – segundo os devotos, a santa salvou a cidade de bombardeios, quando foi desencadeada a revolução liderada por Vargas – e nos anos seguintes se propagou pelo Rio Grande do Sul e também pelo país. Padre Valle, o principal divulgador da devoção, vinculou o culto a Medianeira aos nascentes Círculos Operários e a pesquisadora entende que este foi um dos fatores que favoreceu o fortalecimento da devoção.
Em 1937, os Círculos adquiriram projeção nacional – com a criação do Movimento Nacional dos Círculos Operários Católicos, no Rio de Janeiro – e, ao mesmo tempo, N. Sra. Medianeira foi entronizada “Rainha e Advogada” dos trabalhadores brasileiros. Do ponto de vista simbólico, Medianeira se tornou uma “poderosa Senhora, colo materno e consolo nos momentos de dor, aflição e perigo”. Vinculada ao projeto de difusão da Doutrina Social Católica, que buscava soluções para as aflições da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, combatia o “socialismo revolucionário”, N. Sra. Medianeira ganhou o coração dos operários. Nas festas em honra a santa, em Santa Maria, operários de Porto Alegre e Pelotas vinham de trem participar.
Em 1942, Medianeira foi oficialmente entronizada padroeira do Rio Grande do Sul, e, em 1951, a direção nacional dos Círculos Operários entregou ao Papa Pio XII sete volumes de assinaturas (117 mil assinaturas) “pela definição do dogma de Medianeira de Todas as Graças”. A “Poderosa Senhora” intervinha a favor dos operários, apaziguava suas aflições, e servia de defesa contra a ameaça comunista.
A ação dos Círculos Operários arrefeceu nas décadas seguintes – a partir dos anos 50, houve mudanças na política católica, a Ação Católica, p.ex., passou por transformações –, mas nem por isso a devoção a Medianeira arrefeceu. Em Santa Maria, por sinal, continuou crescendo. Segundo a pesquisadora, Igreja e Estado fizeram esforços conjuntos para que a santa se legitimasse aos olhos e corações dos brasileiros e não apenas dos operários.

Em relação ao comunismo, Nossa Senhora sempre esteve alerta. Foi isso que escutei quando criança. Foi isso que lembrei ao ler o artigo da professora Marta Borin. Com inteligência e planejamento, o clero católico trabalhou para que os seus fiéis assim pensassem e se sentissem protegidos das mazelas do perigo vermelho.