domingo, 24 de novembro de 2013

Boate Kiss

        A moça que sorri para mim no restaurante é uma das sobreviventes da Boate Kiss. Logo depois da catástrofe, ela me contou que não sabe como escapou. Ela e o namorado saíram correndo, tropeçaram e se estatelaram no chão. “Alguém caiu por cima de nós”, ela disse. “Eu desmaiei e me arrastaram lá de dentro. Não sei como.”
Quando ela se deu conta, estava sentada no asfalto, com os joelhos esfolados e os pulsos vermelhos. Nos pulsos, havia marcas de mãos que a haviam segurado com força e a arrastado. Ela e o namorado foram salvos dessa maneira.
A moça que sorri para mim, no restaurante a quilo que freqüento, é uma das sobreviventes. Às vezes conversamos. Há um ano atrás, eu li o seu trabalho de conclusão de curso e participei da banca de avaliação. Às vezes conversamos sobre o tempo, a vida e o futuro.
Apesar dos pesadelos, crises de choro, cuidados redobrados com a saúde, medicação, mais os efeitos colaterais da medicação, ela continua sorrindo. Nenhuma nuvem parece encobrir os seus olhos.
Eu e ela nos cruzamos semanalmente e nos cumprimentamos. No restaurante, cada um de nós se serve de arroz, feijão, carne de gado, frango ou peixe, e não esquecemos as verduras e legumes. Às vezes aponto para ela que tem bife de fígado. “Bife de fígado é muito importante para a saúde”, eu digo, “minha mãe sempre diz isso.”
Ela ri e imagino que a mãe dela também repete esse mantra. Eu vejo a moça caminhar por entre as mesas, segurando o seu prato, e penso que nunca entenderei o que aconteceu na Boate Kiss.
Dias antes do episódio, minha filha me contou que a boate era uma das mais prestigiadas da cidade, para festas universitárias. Casa noturna badalada. Festas muito concorridas, com superlotação e gente na fila, na calçada, esperando a hora de entrar.
Festas que exigiam maior atenção com a roupa, observou uma aluna, acentuando que não era como ir a Boate do DCE, “onde não se repara tanto no que as pessoas estão vestindo”.
Volta e meia eu passava pela frente da boate – sempre durante o dia – e não imaginava que aquilo fosse uma arapuca com uma única saída. E com material de vedação acústica – a malfada espuma – completamente inadequado e fora do padrão indicado. Uma espuma que propaga o fogo com rapidez e, pior de tudo, que produz uma fumaça letal.
Nunca imaginei que uma construção com tantos erros atravessasse incólume o coração de uma cidade com autoridades responsáveis!
A moça que sorri para mim, no restaurante a quilo, é uma das sobreviventes. Às vezes falamos do tempo, da vida e nunca das normas e regulamentos que regem a vida de uma cidade. Muito menos comentamos a respeito do processo judiciário em curso, que visa identificar o grau de responsabilidade de alguns dos atores envolvidos no caso, aqueles que caíram nas malhas da Justiça.
Sorrimos e nos servimos de arroz, feijão, carne, e não esquecemos legumes e verduras. Para a sobrevivência de um corpo são necessários mil e um cuidados. Um descuido e lá vem uma carência disso ou daquilo, de vitamina B, C ou ferro.

“Por isso o bife de fígado, não é mesmo, minha amiga?”