terça-feira, 16 de maio de 2017

Crônicas pelotenses (1990) - Infância

Quantas quadras separam a Rua XV de Novembro da Rua Santa Cruz? Não realidade, não mais de quatro. Mas não tenho mapa de Pelotas para conferir, é meia-noite e há uma coruja piando no quarteirão. Ainda pouco estava na janela do apartamento, bebia um café, olhava os morros que cercam Porto Alegre, quando me vi prisioneiro de uma lembrança dos tempos de guri. Me enxerguei sentado nos degraus de um casarão da Rua XV, que servia de grupo escolar, olhando a torre dos bombeiros, assistindo o dia escurecer – cinzento, muito cinzento – e meu irmão menor de castigo na sala da diretora. Os degraus de mármore esfriavam minhas nádegas, a cerração envolvia a torre dos bombeiros e um medo estranho crescia dentro de mim. O entardecer multiplicava as quadras que separavam minha casa do grupo escolar e eu me sentia como se estivesse perdido no mar, cada vez mais longe da praia.
“Está bem, podes ir”, ouvi a diretora dizer ao meu irmão. “Amanhã eu falo com a tua mãe”, ela completou. Ele apareceu na porta da escola, caminhou na minha direção, os olhos brilhando, a pasta dançando numa das  mãos. “Vamos”, ordenou. E nós atravessamos a Rua XV, passamos pelos bombeiros e descemos a Rua Gomes Carneiro. Eu avistava o armazém do seu Inácio, lá na esquina da Santa Cruz, perdendo-se na névoa, e sentia que nunca conseguiria chegar em casa. Era esse o destino dos navegadores, delirava: perder-se na cerração. Meu irmão falava da briga que tivera no recreio – motivo do castigo na sala da diretora – e garantia que batera em todos. Ria, exibia os dentes, como hoje ri atrás dos bigodes, a alegria envolvendo quem está ao redor.
Kiko, eu me pego murmurando nessa madrugada, quando iremos pescar no Canal São Gonçalo? Quando iremos jogar nossas linhas e experimentar as chumbadas que preparamos no quintal? É noite, a cidade dorme, nossos filhos crescem, nós usamos barba, bigode e não vestimos mais as pesadas capas de inverno Renner, como naquele entardecer. Tu caminhavas ao meu lado, confiante dos teus braços, enquanto meu coração se oprimia.
Depois nós chegamos em casa e nada falei para a mãe, como pediras. Ainda te vejo sentado junto a mesa, envolto na luz amarelada da copa, tomando sopa e sorrindo. E penso: te devo um chope, meu irmão, um chope para retribuir aquela caminhada na cerração, vivendo a confiança que sentias em ti, aprendendo contigo, enquanto meu coração se oprimia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário