terça-feira, 16 de maio de 2017

Crônicas pelotenses (1990) - Regresso

Visitei Pelotas depois de anos. Desci na nova rodoviária [nos limites do perímetro urbano da cidade] e senti falta da antiga rodoviária na Rua Marechal Deodoro, próxima ao centro. Estranhei o fato dos ônibus não estacionarem mais em perpendicular numa rua de paralelepípedos sujos de óleo. Mas era uma manhã de céu limpo – azul, muito azul – que logo esqueci disso tudo e saí caminhando. Fui andando por uma avenida sem moradias, que nem sabia onde ia dar, e deixei o sol e o vento escreverem no meu corpo as histórias da cidade. Quando dei por mim, estava diante do Ginásio Pelotense.
Lembrei, então, de um desfile escolar nos anos 60, no qual eu marchava nos batalhões do Colégio Gonzaga. Desfilávamos naquela avenida [Bento Gonçalves], enquanto os alunos do Pelotense jogavam milho em nossas pernas. Sorri pensando se Pelotas ainda abrigava essas brincadeiras de estudantes e me vi – guri de onze anos – orgulhoso no meu uniforme de calça azul-marinho e casaco vermelho.
Com esse uniforme, eu também caminhava com meu pai pelo centro da cidade e ele contava histórias da Revolução de 1923, quando Zeca Netto invadiu a cidade e deixou umas balas cravadas numa árvore em frente ao Colégio Gonzaga.
– É verdade essa história? – eu perguntava. Ele respondia que sim e explicava que era o que contavam quando era menino. [Nasceu em 1924, um ano depois da Revolução.]
– Fala mais, pai – eu incentivava. E ele se entusiasmava repetindo que a invasão começara de madrugada, pelos lados do Fragata, e que logo os rebeldes tomaram os quartéis e avançaram para o centro da cidade, onde foram ovacionados.
– Por que nunca fizeram um filme sobre isso? – eu perguntava. Mas não lembro o que ele respondia.
Nós íamos ao cinema todos os finais de semana – Cine Capitólio, Sete de Abril, Guarany, Pelotense – e depois passávamos no Café Aquarius. Ele bebia um cafezinho, eu tomava um guaraná. Ele se encostava no balcão e eu o observava beber numa minúscula xícara sem derramar uma gota.
Mas nesse dia que voltei a Pelotas não havia desfile de colegiais na Avenida Bento Gonçalves. A cidade se movimentava no ritmo lento dos domingos e fiquei parado numa esquina, me dando conta de que a cidade que eu procurava não existia mais. A banda do Colégio Gonzaga não desfilaria naquele domingo e ninguém me contaria histórias da Revolução de 1923.
Tratei de tomar alguma atitude e entrei numa farmácia para comprar fichas de orelhão. Liguei para uma tia e me senti abençoado quando ela me reconheceu e convidou para almoçar. A cidade se reconfigurou naquele instante. Retomei meus passos, caminhei até uma casa de porta e janela na Rua Santos Dumont – a casa dos meus avós paternos, falecidos há décadas – e a tia estava na porta. Na cozinha, um cheio de galinha se desprendia da panela e logo abrimos a primeira cerveja.
Não sei o que conversamos, mas uma longa teia de lembranças e risos nos envolveram – e quase esqueci que estava indo a Pelotas para um velório.

Obs.: O símbolo do Colégio Gonzaga era uma galinha gorda e por isso os estudantes do colégio rival – Ginásio Pelotense – jogavam milho em nós.

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