sábado, 4 de novembro de 2017

D. Afonso e o Mar Português

Em agosto de 1471, o rei português D. Afonso V conquistou a cidade de Arzila, na costa do Marrocos. Foi um golpe de sorte. Não era a primeira vez que os portugueses faziam a investida. A expansão lusitana no litoral atlântico da África vinha desde 1415, com a conquista de Ceuta, e Arzila estava na mira. Em 1471, o soberano de Arzila partiu para uma guerra no interior da África (cercar a cidade de Fez), deixou sua cidadela militarmente enfraquecida e os portugueses aproveitaram. Em menos de quatro dias, cercaram e tomaram Arzila, provocando enorme quantidade de mortos. Ao final dessa investida, o rei português consagrou a mesquita moura a Nossa Senhora da Anunciação, assegurando o domínio do território.
Na sequência, assustados com a fama de “terríveis piratas” que os portugueses vinham adquirindo no norte da África (mais uma vez comprovada na conquista de Arzila), os habitantes de Tanger abandonaram a cidade e as tropas do rei D. Afonso tomaram o local. Ponto para a Cristandade. D. Afonso V tinha espírito cruzadístico e dava à expansão ultramarina lusitana um caráter religioso – sem descuidar de garantir aos nobres a pilhagem das riquezas assim como assegurar aos mercadores lusos o controle das rotas comerciais africanas. Era mais um ponto na formação do Mar Português – séculos mais tarde cantado por Fernando Pessoa em Mensagem: “Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!”
Em homenagem a conquista de Arzila e Tanger, D. Afonso encomendou às oficinas de tecelagem flamengas quatro enormes tapetes, representando o desembarque, o cerco e o assalto a Arzila, e, por último, a tomada de Tanger. Tapetes de 4 metros de altura por 10 de comprimento, que conheci no Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães (norte de Portugal). Na verdade, achava que tinha conhecido. Mas quando estive lá, em 2012, o que vi foram réplicas desses tapetes (conhecidos como Tapeçaria de Pastrana).
Sala do Paço dos Duques de Bragança com réplica de um dos tapetes.
 Escrevo sobre isso porque ando lendo sobre a expansão ultramarina portuguesa – a formação do Mar Português – e me deparei com uma referência aos famosos tapetes. Uma tapeçaria grandiosa, com muitas figuras, cores e símbolos, e recordei a impressão que tive... Uma dessas boas e inesquecíveis experiências de turista: fiquei fascinado com o modo como a grandeza lusitana é tratada e reverenciada, lembrei ao mesmo tempo as atrocidades cometidas por D. Afonso e seus soldados... e engasguei. Coisa de professor de História, talvez. Não fui capaz de passar “além da dor” que toda a humana lida encerra – especialmente a dor, a violência e as lágrimas das nações que ultrapassaram o Cabo Bojador – e fiquei com as imagens das tomadas de Arzila e Tanger atravessadas na garganta. 
Tão cedo não irei novamente ao Paço dos Duques de Bragança, mas na próxima viagem a Lisboa já coloquei no roteiro os museus que exibem material do expansionismo lusitano na África, Índia e China (e, na certa, também com alguma coisa de São Francisco Xavier, o grande missionário do Oriente). O material do saque, da pilhagem e do comércio (coisas que se confundiam nas empreitadas portuguesas – junto com a conquista religiosa) e tentarei compreender melhor as coisas. Ou não me engasgar, ao menos. Aceitar, enfim, o horror e a grandeza da aventura humana, D. Afonso, as atrocidades lusitanas e a formação do Mar Português.

Um comentário:

  1. Mais do que nunca (termo batido, né?) precisamos compreender, Vitor, o que deve ter sido as "conquistas", não só portuguesas, mas belgas, inglesas e francesas na nossa tão espoliada Mãe África. Espoliada até hoje. Fosse um continente "pobre", estariam lá vivendo sossegados até hoje seus povos. Mas aí veio o danado do ter, do possuir, do roubar e vender, antes do sentir, do conhecer e do desfrutar do diferente e do estranho. É sempre bom ler um Professor que escreve de maneira instigante.
    Um abraço,
    Vaz

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